sexta-feira, 11 de setembro de 2009

ADOLESCÊNCIA - um fenômeno sociocultural

Trechos extraídos de entrevista publicada por "Presente! Revista de Educação" - editada pelo CEAP (Centro de Estudos e Assessoria Pedagógica) - ano XV, n. 4, set/nov. 2007, pag. 5 a 11.


Presente! - Quer dizer que o quê atualmente chamamos de adolescente é uma invenção nossa?

Feizi Milani - O que nós temos hoje - toda essa caracterização da adolescência como um período de rebeldia, de indefinição, de humor instável, de crise e do adolescente como o “aborrecente” - é um fenômeno cultural e ao dizer isso, não estou afirmando que não é real. A cultura não só é real como permeia todas as nossas experiências. Então, tem gente que pensa, quando eu digo que não é biológico e sim cultural, que a adolescência é fantasia da nossa imaginação. Não. Somos seres culturais. Por exemplo, há povos na África e povos nativos das Américas nos quais quando o garoto chega a uma determinada idade ou atinge uma certa altura, ou a menina tem a sua primeira menstruação, são levados a um local, passam por um ritual e, ao retornarem, são recebidos pela comunidade como homem e como mulher, já de posse de todos os direitos, prerrogativas e deveres de um adulto.

Presente! - E na nossa sociedade como vemos o adolescente, culturalmente falando?

Feizi Milani - Na nossa sociedade a adolescência tem cada vez se transformado numa coisa muito complicada e complexa, principalmente porque está sendo manipulada por interesses econômicos. Quanto mais o adolescente se rebelar contra os pais, ou for “do contra”, não importa contra o quê, quanto mais os adolescentes forem subdivididos em tribos e galeras, e, finalmente, quanto mais precocemente se iniciarem esses fenômenos e mais tardiamente se encerrarem, melhor será para os interesses econômicos da indústria do consumo, da diversão, do lazer. É exatamente isso que está sendo promovido. Então, essa história de "pré-adolescente" é uma invenção extremamente recente. Aconteceu na frente dos nossos olhos. Isso não existia há cinco anos atrás e, “de repente” meninos e meninas de oito e nove anos de idade começaram a dizer “eu sou pré-adolescente”. Ora, isso não partiu de nenhum deles em específico, isso foi induzido pela propaganda, pela mídia e por outros mecanismos e estratégias. Mas com que objetivo? Com o interesse de segmentar um novo nicho mercadológico. Então, existe o nicho das crianças pequenas, depois o das crianças maiores e agora, inventaram o pré-adolescente, sendo que, para cada um desses nichos há produtos específicos: roupas, sapatos, marcas, brinquedos, bandas musicais... . E o que é o pré-adolescente? Nada mais que uma criança que assume artificialmente os comportamentos que ela própria observa no adolescente e que, conseqüentemente, quer ter os mesmos direitos de um adolescente. É uma invenção artificialmente induzida, mas que está plenamente atingindo o seu objetivo de vender mais.

Presente! - Ao falar sobre a caracterização do adolescente, o senhor lembrou que às vezes ele é chamado de “aborrecente”. Parece que ao mesmo tempo em que o admiramos não o poupamos de crítica. Não sabemos o que fazer com ele?

Feizi Milani - Somos uma sociedade permeada por paradoxos. Somos uma sociedade enferma porque ninguém quer ser o que de fato é. A criança quer ser adolescente, o adolescente quer ser jovem, o jovem quer ser adulto e o adulto quer ser jovem. Então, o adolescente é criticado, pressionado a amadurecer por que tem que se tornar adulto, tem que assumir responsabilidades. Por outro lado, adultos e idosos querem ser jovens. A diversão deles, o seu "faz de conta" é que eles também são jovens. Ninguém quer ser velho. Na verdade, poucos querem ser o que são, aceitando a beleza, as possibilidades e as limitações de cada etapa da vida. A maioria das pessoas está tentando aparentar alguma coisa, exceto o que é, de fato. Por que o adolescente não pode simplesmente viver essa fase? Porque o adulto não pode se assumir como tal? Agora, é bom lembrar que adulto não precisa ser chato, monótono, sem criatividade, sem espontaneidade, sem alegria. Por que o idoso tem que ficar dizendo: “Nós somos os jovens da terceira idade”? Qual é o problema de ser velho? Não é o destino de todo mundo? Quer dizer, é preciso ser sortudo, para se viver o suficiente para chegar lá. Mas não, tem que existir a negação. Até as reportagens sobre idosos procuram mostrá-los indo para a farra e com um comportamento bem adolescente. De maneira alguma estou dizendo que o idoso não deva dançar, curtir, passear, namorar, mas cada um assumindo o que é. O que preocupa e angustia, ao ver essa sociedade, é essa enfermidade coletiva. Ninguém está satisfeito com o que é, ninguém aceita viver o momento presente.

Presente! - Se ninguém quer ser o que é, significa que o adolescente está sem referência, sem espelho, não é mesmo?

Feizi Milani - Exatamente. Essa geração, que agora está na adolescência e na juventude, eu a estou chamando de “sem noção” . Essas pessoas, não apenas os jovens, pois há muito adulto sem noção também, foram educadas dentro do modelo familiar da complacência, da liberalidade sem responsabilidades, da falta de limites. São pessoas que não têm noção da existência do outro, nem de seus próprios limites, não têm noção que o mundo não gira em torno do seu umbigo e não conseguem entender a necessidade de leis e normas de convívio. Pensam que todos ao seu redor estão a seu dispor e a seu serviço. Diariamente vejo pessoas assim, onde moro, no trabalho... nos gestos mais simples e em comportamentos como estacionar o carro em local proibido, como subir com o carrinho de compras do prédio e largá-lo no corredor, chegar atrasado para a aula e deixar a porta da sala aberta. Obviamente, os "sem noção" são fruto de uma educação familiar que se baseou na premissa de que os pais devem realizar todas as vontades dos filhos, de que não se pode dizer não, para que a criança não fique frustrada... Bem, essas crianças inevitavelmente crescem! Algumas se tornam adolescentes delinqüentes, outras se tornam jovens irresponsáveis e, muitas, adultos sem noção.

Presente! - O senhor trabalha com adolescentes de diferentes contextos sociais. Por exemplo, o sujeito que começou a trabalhar ainda criança também tem direito a crise de adolescência? Temos diferentes tipos de adolescência?

Feizi Milani - Ele vive uma adolescência diferente, mas a influência do materialismo e do consumismo é tão grande que ele sonha com a mesma coisa do outro que vive num condomínio de luxo. Os sonhos e as fantasias são os mesmos, inclusive as angústias. Quando converso com meninos que trabalham e passam o dia na rua, descubro que, para muitos deles, o maior sonho é ter um celular e, no caso de alguns, o fato de não ter, se transforma em angústia. Aí eu perguntei: para quê você quer ter um celular?

Presente! - É a representação dos sonhos e da angústia num objeto.

Feizi Milani - Exato. Mas até bem pouco tempo atrás, nenhum de nós tinha celular. Depois se popularizou. Para que serve um celular para quem não tem para onde ligar, ou não tem de quem receber ligação ou não tem como pagar a conta? Isso se torna uma fonte de angústia porque o reconhecimento dele como ser humano e cidadão passa pela posse de um bem de consumo. Está correto dizer que não existe "a" adolescência, mas "adolescências e juventudes", no plural, porque as experiências são completamente diferentes. Porém, no final das contas, essa cultura consumista, que só reconhece e valoriza o outro quando ostenta certos bens de consumo - verdadeiros sinais de poder aquisitivo -, permeia todas as classes econômicas e acaba afetando a todos. Só que alguns têm condições de responder a isso, ainda que se submetendo de forma acrítica, ao adquirirem esses bens e sinais, enquanto que a imensa maioria é excluída dessa possibilidade. Isso gera enormes sofrimentos.

Presente! - Não acha que a gente pode esvaziar de sentidos essa nova geração, julgando que em outros tempos era melhor?

Feizi Milani - Eu não assumo esse discurso de “no meu tempo era melhor”. Não idealizo a minha geração, mas vejo que a pressão externa aumentou muito, os mecanismos de gerar alienação foram aprimorados infinitas vezes, o poder da mídia cresceu assustadoramente. Acho que hoje está menos freqüente o adolescente ou o jovem com uma postura protagonista, de assumir uma causa, um ideal seja religioso, ecológico, social... Embora existam muitos projetos trabalhando nessa direção. Então, eu não parto da idealização de uma outra geração, nem de uma postura preconcebida diante da atual, mas venho constatando o quanto essa geração está sendo manipulada. Uma das formas de manipulação é a disseminação do fatalismo. Quanto mais pessoas acreditarem que as coisas sempre foram assim e que, conseqüentemente, sempre serão assim, menos vão se mobilizar em prol de qualquer coisa que represente uma mudança. Apagar a história, fazer com que as pessoas esqueçam a história é uma excelente estratégia de dominação.

Presente! - Esse fatalismo também chegou à escola?

Feizi Milani - O fatalismo é um tipo de infecção que mistura de pessimismo, ceticismo e impotência, e que está altamente disseminada também entre os professores. Estão se sentindo impotentes diante de toda essa situação. Só que, na verdade, os professores são aqueles que têm a maior possibilidade de desencadear alguma mudança. Não que seja fácil, absolutamente. Mas “difícil” não é a mesma coisa que “impossível”! A prova de que é possível é que em muitas escolas, apesar de tudo, existem professores que estão fazendo um excelente trabalho educativo e transformador, um trabalho que vai além da mera transmissão de conhecimento. Porém, esses professores são uma minoria. Existe uma outra minoria que não acredita em mais nada e faz questão de disseminar o vírus do fatalismo. Entre essas duas minorias, encontra-se a maioria acomodada e passiva. Essa é a realidade em todos os campos da vida humana, não apenas na escola. Se analisarmos o fenômeno da violência, veremos que há uma minoria que vive da violência e a provoca, outra que promove a paz, enquanto a maioria fica no meio se sentindo vítima, se lamuriando, se queixando e esperando uma solução mágica. Se essa maioria se engajasse, a sociedade se transformaria rapidamente. Então, a responsabilidade maior recai sobre esses que só pensam nos seus interesses pessoais, numa postura imediatista e mesquinha, e não assumem um compromisso em prol da coletividade. Quando falo desses três grupos - uma minoria que está ativamente comprometida em promover a transformação, outra minoria que está engajada em evitar qualquer transformação e uma maioria que está apática e silenciosa - lembro das palavras de Martin Luther King Jr.: “O problema não é a ação dos maus, mas a omissão dos que deviam fazer alguma coisa pelo bem”.